Por: Rute Coelho (professora do 1º ano do 1º ciclo)
O conhecimento é construído em diversos contextos ao longo da vida, sendo o ambiente escolar apenas um deles — ainda que fundamental. É nesse espaço que o professor ou educador desenvolve a sua prática. A compreensão que este profissional tem sobre o processo de construção do conhecimento pelas crianças orienta e delimita as suas ações pedagógicas.
As aprendizagens da vida ganham voz nas práticas docentes, especialmente quando o professor defende que uma infância feliz é a base para um desenvolvimento saudável e para uma inserção social equilibrada. Nesse sentido, “a forma como experienciaram a sua infância (…) tem influência na forma como se relacionam com as crianças e nas áreas que selecionam como prioritárias no seu trabalho” (Sarmento, 2009, p. 313).
Se olharmos para o processo de alfabetização, verificamos que aprender a ler e escrever é muito mais do que juntar letras ou formar sílabas — é um processo profundo de construção de sentido, identidade e expressão — magia e identificação. Por isso, as metodologias tradicionais que reconhecem a alfabetização como um exercício puramente mecânico revelam-se vazias de sentido diante da riqueza da infância.
É neste contexto que duas grandes teorias da educação contemporânea se apresentam como aliadas poderosas: as Cem Linguagens da Criança, de Loris Malaguzzi, e a teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner. Ambas tecem a alfabetização mais sensível, ampla e significativa.
A Leitura e a Escrita nas Cem Linguagens da Infância
“A criança tem cem linguagens, cem mãos, cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar.” — Loris Malaguzzi
Loris Malaguzzi, mentor da abordagem pedagógica de Reggio Emilia, defendia que toda a criança tem “cem linguagens” — ou seja, cem formas de se expressar, comunicar, experimentar e compreender o mundo.
Para ele, limitar a aprendizagem apenas à linguagem escrita e verbal é “roubar” à criança as outras noventa e nove formas de aprender. Quando falamos no processo de alfabetização, isso significa que a criança precisa viver a leitura e a escrita de forma global: com o corpo, com afeto, com arte, com som e com ambiente.
Como se vive a alfabetização de forma integral?
- Uma criança pode explorar letras e palavras através da música;
- Outra pode criar histórias através de dramatizações;
- Outra pode expressar-se melhor desenhando ou construindo cenários com blocos e tintas, antes de escrever.
E onde entram as Inteligências Múltiplas?
Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard, trouxe a ideia de que não existe uma única forma de ser inteligente. Defendia que cada ser humano é portador de diferentes inteligências: linguística, lógico-matemática, corporal, musical, visual-espacial, interpessoal, intrapessoal, naturalista, entre outras.
Na prática, isso significa que:
- Uma criança com inteligência musical pode aprender a ler e escrever melhor com canções e rimas;
- Uma criança com inteligência espacial pode aprender a escrever através de letras construídas com massinhas ou blocos;
- Uma criança com inteligência corporal pode precisar de movimentar o corpo enquanto aprende — escrever de pé, através de jogos, ou escrever no chão.
No coração de uma sala de aula viva, onde as crianças desenham, cantam, dramatizam, constroem, questionam e riem, existe uma verdade esquecida pela pedagogia tradicional: cada criança tem diferentes formas de aprender e de se expressar. É esta combinação que lhe dá a personalidade e a distingue dos outros enquanto ser único e individual.
Entrelaçando os Significados: Quando as duas ideias se encontram
“A chave da educação não é ensinar todas as crianças da mesma forma, mas ensiná-las de acordo com a maneira como elas aprendem.” — Howard Gardner
As teorias de Malaguzzi e Gardner, embora distintas, convergem num ponto essencial: a valorização das múltiplas formas de aprender.
Enquanto Gardner nos ensina a reconhecer diferentes tipos de inteligência, Malaguzzi desafia-nos a criar ambientes onde essas inteligências possam manifestar-se com vida, sensibilidade e expressividade.
Toda a linguagem é uma inteligência em ação — e vice-versa.
- A linguagem musical de Malaguzzi encontra eco na inteligência musical de Gardner;
- A linguagem do corpo e do gesto costura a inteligência corporal-cinestésica;
- A linguagem da imagem relaciona-se com a inteligência visual-espacial.
Na alfabetização, isso significa permitir que:
- A escrita não aconteça apenas no papel, mas também no ar, na areia, no corpo;
- A leitura não comece só com o alfabeto, mas com histórias contadas, vividas, dramatizadas;
- O espaço das letras partilhe com as imagens uma nova narrativa com vários significados.
No entanto, é imprescindível que se prenda a atenção do aluno. É necessário que a aprendizagem o divirta, que estimule a sua imaginação, que auxilie no desenvolvimento da sua inteligência — tal como defende Traça (1992) em O Fio da Memória. Caso contrário, corre-se o risco de as crianças viverem a leitura e a escrita como uma aprendizagem penosa, em espaços que não as levam a sério.
Apesar de crianças e adultos habitarem o mesmo mundo, ambos sentem e vivenciam o meio que os rodeia de forma diferente (Bettelheim, 2011).
Conclusão: A alfabetização como magia, identidade e expressão
Em suma, a escola que abraça estas metodologias transforma a leitura e a escrita num processo mágico, que envolve corpo, emoção, imaginação e ligação com o mundo.
E é justamente aí que se encontra a verdadeira alfabetização: aquela que forma leitores e escritores de Si e da Vida. A escola que narra o mito, que é a Criança.
Referências Bibliográficas
- Bettelheim, B. (1998). Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa: Bertrand Editora.
- Gardner, H. (1999). Intelligence Reframed: Multiple Intelligences for the 21st Century. New York: Basic Books.
- Malaguzzi, L. (1996). The Hundred Languages of Children. In: Edwards, C., Gandini, L., & Forman, G. (Orgs.). The Hundred Languages of Children: The Reggio Emilia Approach—Advanced Reflections.
- Sarmento, T. (2009). Contextos de vida e aprendizagem da profissão. In João Formosinho.
- Traça, E. (1992). O Fio da Memória – Do Conto Popular ao Conto para Crianças. Porto: Porto Editora.